Selmer Mark VI: Anatomia de uma Lenda

O Padrão-Ouro do Saxofone

O Selmer Mark VI não é meramente um instrumento musical: é um artefato cultural, um ícone de design e o padrão-ouro indiscutível pelo qual todos os outros saxofones são, de uma forma ou de outra, julgados. Lançado em meados do século XX, ele representa um ponto de convergência perfeito entre inovação de manufatura, timing histórico e adoção por uma geração de artistas que redefiniram a música popular e o jazz. Neste artigo busco apresentar a anatomia desta lenda, questionando como um objeto produzido em massa transcendeu sua função para alcançar um status mítico e em que medida essa reputação se baseia em qualidades empíricas versus contingências históricas e folclore.

Através de uma análise aprofundada de seu contexto histórico, anatomia técnica, identidade sônica, comparações com seus predecessores e sucessores, e a desconstrução de sua mitologia, quero oferecer uma visão abrangente do Mark VI. O escopo abrange desde as nuances de sua fabricação e as variações ao longo de sua produção até seu papel no panteão dos mestres do saxofone e a complexa dinâmica de seu mercado atual, estabelecendo um entendimento claro do porquê o Selmer Mark VI continua a ser, décadas após o fim de sua produção, o saxofone mais reverenciado e discutido da história.

I. A Gênese de um Ícone: A Evolução da Selmer até o Mark VI

A ascensão do Mark VI ao status de lenda não foi um evento espontâneo, mas o culminar de décadas de inovação e uma resposta direta às necessidades de um cenário musical em rápida transformação. A história do instrumento está intrinsecamente ligada à própria história da empresa Selmer e à evolução do jazz.

Contexto Histórico da Selmer

A empresa Selmer Paris foi fundada em 1885 por Henri Selmer, um clarinetista de formação. A sua entrada no mundo do saxofone foi um momento decisivo. Após a morte de Adolphe Sax em 1894, seu filho, Adolphe Edward Sax, enfrentou dificuldades para manter a fábrica de saxofones do inventor. Henri Selmer acabou por adquirir a fábrica, estabelecendo uma linhagem direta com o criador do instrumento – um fato que se tornaria uma parte poderosa da herança e do apelo da marca. Embora a Selmer já produzisse saxofones de forma modesta, foi o lançamento da “Série 1922” que posicionou a empresa como uma força global na fabricação de saxofones, destacando-se pelo alto nível de acabamento e profissionalismo.

Os Predecessores Revolucionários

O design do Mark VI foi uma evolução, não uma revolução isolada, construída sobre as inovações de seus antecessores imediatos.

O Balanced Action (1936-1947) representou o primeiro grande salto em direção à ergonomia moderna. Ele introduziu um redesenho radical na mesa de chaves da mão direita, eliminando a articulação complexa dos modelos anteriores e estabelecendo um layout que é a base do design moderno.[6, 7] Este modelo marcou uma mudança fundamental na filosofia de design da Selmer, priorizando o conforto e a fluidez para o músico.

O Super Balanced Action (1948-1953), foi o passo final e crucial. Sua inovação mais significativa foi o deslocamento dos pratos das chaves (tone holes) das pilhas superior e inferior, quebrando a tradicional disposição em linha reta. Esta mudança foi uma resposta direta à evolução do jazz. Músicos que antes tocavam sentados em grandes orquestras (big bands), onde a ergonomia em linha era suficiente, agora se apresentavam de pé, como solistas em pequenos combos, exigindo um instrumento que se adaptasse à posição natural das mãos para uma técnica mais rápida e virtuosística. O SBA é, portanto, corretamente visto como um “instrumento de transição”, que também introduziu os primeiros barítonos com a chave de Lá grave.

O Palco Está Montado

No início da década de 1950, a Selmer já era sinônimo de inovação e qualidade. O cenário musical, dominado pela complexidade e velocidade do bebop e do jazz moderno, ansiava por um instrumento que consolidasse os ganhos ergonômicos do BA e do SBA com uma flexibilidade tonal superior. A evolução da música impulsionou a evolução da engenharia. O palco estava perfeitamente montado para a estreia do Mark VI em 1954, um instrumento que prometia ser a síntese definitiva de tudo o que um saxofonista moderno poderia desejar.

II. Anatomia do Mark VI: Uma Análise Detalhada

O nome “Mark VI” não designa um modelo monolítico, mas sim uma família de instrumentos que sofreu mudanças significativas e contínuas ao longo de suas duas décadas de produção principal. Entender essas variações é fundamental para decodificar sua mística e valor.

Cronologia e Manufatura

A produção dos modelos alto e tenor do Mark VI estendeu-se de 1954 a aproximadamente 1974/1975. No entanto, outros membros da família tiveram uma produção mais longa: o sopranino até cerca de 1985, e os saxofones soprano, barítono e baixo até 1981, pois esses modelos não foram substituídos pelo Mark VII.

A estreia oficial ocorreu em 1954, mas a história começa antes. Protótipos começaram a aparecer por volta de 1952 (com números de série na faixa de 49.000), com pequenos lotes de teste sendo produzidos na faixa de 54.000.] A produção em larga escala estava em pleno andamento por volta do número de série 55.000. A famosa campanha publicitária da Selmer EUA, que destacava o número de série 53.727, foi uma ferramenta de marketing eficaz, mas historicamente imprecisa. Este número correspondia apenas ao primeiro saxofone alto enviado para os Estados Unidos, e centenas de modelos “Super Action” ainda foram fabricados depois dele.

Para fornecer um guia prático para datação, a tabela a seguir resume os intervalos de números de série por ano de produção, compilados a partir de registros da Selmer. É crucial notar que estas são aproximações, pois a produção e o envio poderiam resultar em sobreposições e inconsistências de até 18 meses em relação às datas oficiais.

Ano de ProduçãoIntervalo de Números de Série (Aproximado)Notas Relevantes
195453.727–59.000Início da produção. Sobreposição significativa com o Super Balanced Action.
195559.001–63.400Era dos “5-dígitos” iniciais, muito cobiçada.
195663.401–68.900 
195768.901–74.500 
195874.501–80.400Transição do arco “médio” para o “longo” nos altos (em ~87.5xx).
195980.401–85.200 
196085.201–91.300 
196191.301–97.300 
196297.301–104.500Fim da era dos “5-dígitos”.
1963104.501–112.500 
1964112.501–121.600 
1965121.601–131.800Fim da era do “arco longo” nos altos (em ~136.xxx).
1966131.801–141.500 
1967141.501–152.400 
1968152.401–162.500 
1969162.501–173.800 
1970173.801–184.900 
1971184.901–196.000 
1972196.001–208.700 
1973208.701–220.800 
1974220.801–233.900Início da transição para o Mark VII (oficialmente em ~231.000, mas com sobreposição).
Tabela 1: Números de Série e Anos de Produção do Selmer Mark VI (Alto e Tenor)

Variações Transatlânticas: Paris vs. Elkhart

Uma característica fundamental da produção do Mark VI é que todos os corpos dos saxofones eram fabricados na França. No entanto, os instrumentos destinados aos mercados americano e britânico/canadense eram frequentemente enviados desmontados e sem acabamento final (listados nos registros de Paris como “blanc ord”). Essa prática, adotada para evitar arranhões durante o transporte transatlântico , resultou em diferenças visuais e de montagem distintas:

  • Laca: Os modelos montados nos EUA, em Elkhart, Indiana, geralmente apresentam uma laca mais escura e de tonalidade dourada-mel, enquanto os instrumentos finalizados na Europa tendem a ter uma laca mais clara.
  • Gravação: O estilo da gravação na campânula é um dos indicadores mais confiáveis do local de montagem.
    • Montagem Francesa: Tipicamente exibe um motivo floral e de borboleta, que pode se estender até a curva do instrumento. Alguns modelos europeus não possuíam nenhuma gravação além da marca Selmer.
    • Montagem Americana: Caracteriza-se por uma gravação mais elaborada, com padrões florais ou em volutas (scrolls).
    • Montagem Britânica/Canadense: Frequentemente apresenta um medalhão simétrico gravado na frente da campânula.
  • Numeração do Tudel: A prática de estampar o número de série do instrumento no tudel era exclusiva da montagem em Elkhart e foi descontinuada por volta do número de série 135.000. Portanto, a ausência dessa marca em um saxofone com gravação de estilo europeu não significa que o tudel não seja original.

A Evolução Interna: As Múltiplas Faces do Mark VI

A Selmer nunca documentou oficialmente as mudanças de design que implementou ao longo da produção do Mark VI. Essa constante, porém silenciosa, evolução criou efetivamente “modelos dentro do modelo”, cada um com suas próprias características e seguidores.

Saxofone Alto – Variações do Arco

A mudança mais discutida e estudada no Mark VI alto é a variação no comprimento do arco (a curva em U na parte inferior do instrumento). Essas alterações foram feitas para resolver questões de entonação e resposta nos registros graves. O especialista Douglas Pipher identificou cinco variações principais, que podem ser identificadas por características visuais e marcas de registro na campânula.

Tipo de ArcoIntervalo de S/N (Aproximado)Período de ProduçãoCaracterísticas Visuais (Bandas de Conexão)Marcador de Registro na Campânula
Curto (Short Bow)55.000 – 75.0001954-1957Bandas alinhadas horizontalmente.Nenhum ou apenas ‘®’
Médio (Medium Bow)75.000 – 87.0001957-1958Bandas ligeiramente desalinhadas, com sobreposição.‘®’ com dois círculos
Longo (Long Bow)87.000 – 136.0001958-1965Bandas significativamente desalinhadas, sem sobreposição.‘®’ com dois tis (~)
Médio Tipo 2136.000 – 201.0001965-1971Retorno a um desalinhamento menor, com sobreposição.‘®’ com três tis (~)
Médio Tipo 3201.000 – Fim1971-1974Similar ao Tipo 2, com uma pequena diferença.Apenas ‘®’ novamente
Tabela 2: Sumário das Variações do Arco do Saxofone Alto Mark VI

Saxofone Tenor – Variações do Tudel

No saxofone tenor, a evolução se concentrou no tudel. Ao longo dos anos 50 e 60, o diâmetro (bore) do tudel foi progressivamente aumentado. Os modelos mais antigos possuíam um diâmetro mais estreito, o que é associado a um som mais “escuro” e “introspectivo”. Os modelos posteriores, com um diâmetro mais largo, são considerados mais “brilhantes” e “arrojados” (brash), com maior projeção.

Outras Mudanças Mecânicas

  • Chaves Laterais (C/Bb): Por volta do número de série 118.5xx, o mecanismo de conexão das chaves laterais de Dó e Si bemol mudou de um design robusto de “língua e ranhura” para um de “esfera e soquete”, que é mais suscetível a desenvolver folga e ruído com o tempo.
  • Sela da Chave de Oitava: A peça soldada ao tudel que segura a chave de oitava foi alterada por volta do S/N 160.000, tornando-se um pouco mais alta.
  • Apoio de Polegar: O apoio de polegar ajustável evoluiu de metal para plástico ao longo da produção.

A Família Completa e Opções Raras

O Mark VI foi notável por ser oferecido em toda a gama de saxofones, do sopranino ao baixo.[11] Além das variações padrão, existiam opções raras que são altamente valorizadas por colecionadores:

  • Chave de Fá# Agudo: Era uma opção extra no início da produção, tornando-se padrão mais tarde.
  • Modelo “Concert”: Um modelo extremamente raro que incluía chaves de trinado adicionais, como D para Eb e C para D.
  • Modelos com Lá Grave: A Selmer produziu modelos de alto e barítono com a extensão até o Lá grave. O barítono com Lá grave é muito procurado por músicos de big band e funk. O alto com Lá grave, no entanto, tinha uma reputação de problemas de entonação, embora isso não tenha impedido o pioneiro do free jazz, Ornette Coleman, de usar um.

Essa constante evolução e a falta de padronização rigorosa são centrais para a identidade do Mark VI. A inconsistência, longe de ser um defeito, é uma característica fundamental. Ela transforma a busca por um Mark VI em uma caça ao tesouro, onde as idiossincrasias e “falhas” de um instrumento específico podem se alinhar perfeitamente com a voz e as preferências de um músico, criando um exemplar “mágico”. Cada Mark VI é, em essência, um protótipo único, um produto de uma era de manufatura artesanal que valorizava o ajuste fino contínuo sobre a uniformidade absoluta.

III. A Sonoridade Inconfundível: O Timbre do Mark VI

O som do Selmer Mark VI é tão lendário quanto sua mecânica. Embora a subjetividade seja inevitável na descrição de timbres, um consenso emerge de décadas de uso por músicos e análises de especialistas.

O Núcleo Sonoro: Riqueza Harmônica e Versatilidade

A característica sonora mais celebrada do Mark VI é sua notável versatilidade. O instrumento possui um núcleo sonoro denso e complexo, rico em harmônicos, que proporciona uma sensação envolvente tanto para quem toca quanto para quem ouve. Essa riqueza permite que o músico molde o som de maneira extraordinária. Um Mark VI pode soar brilhante, cortante e com “edge” para o funk e o rock, ou gordo, quente e escuro para baladas de jazz e música mais introspectiva. Essa flexibilidade tonal é, talvez, sua maior qualidade, explicando por que foi adotado com tanto fervor em uma gama tão ampla de gêneros musicais. O instrumento não impõe um caráter sonoro rígido; em vez disso, ele responde à intenção do músico, tornando-se um veículo transparente para a expressão individual.

A Dicotomia “Dark” vs. “Bright”: Fato ou Ficção?

Dentro da comunidade de saxofonistas, existe uma crença amplamente difundida de que os modelos mais antigos do Mark VI, particularmente aqueles com números de série de cinco dígitos (produzidos antes de 1963), possuem um som inerentemente mais “escuro” (dark), enquanto os modelos produzidos mais tarde são mais “brilhantes” (bright). Essa percepção não é totalmente infundada e está ligada a mudanças físicas documentadas. Nos saxofones tenores, por exemplo, o diâmetro do tudel aumentou ao longo dos anos, o que tende a produzir um som com mais brilho e projeção. Há também a controversa teoria de que a composição da liga de latão foi alterada em torno do número de série 180.000, resultando em um metal mais “duro” e, consequentemente, um som mais brilhante, embora essa mudança de serial também coincida com um redesenho conhecido do tudel, tornando difícil isolar a causa.

No entanto, é crucial tratar essa dicotomia como uma generalização, não uma regra absoluta. A variação individual entre os instrumentos, resultado da fabricação manual, é tão significativa que se pode encontrar exemplares “brilhantes” da era antiga e “escuros” da era tardia. Em última análise, o som está “no ouvido de quem escuta” e é profundamente influenciado pelo setup do músico (boquilha, palheta) e pela sua própria concepção sonora.

O que torna o som do Mark VI tão icônico vai além de suas propriedades acústicas. Ele se tornou o som arquetípico do saxofone de jazz para gerações inteiras de ouvintes e músicos. Isso aconteceu porque os maiores inovadores do gênero — John Coltrane, Sonny Rollins, Wayne Shorter — o utilizaram durante a “era de ouro” do jazz gravado, nas décadas de 1950 e 1960. Como resultado, o “som do Mark VI” evoluiu de uma mera característica de um instrumento para um padrão psicoacústico. Os músicos buscam esse som não apenas por suas qualidades intrínsecas, mas porque é o som que eles internalizaram como “o som certo” do saxofone de jazz. Este fenômeno cria um ciclo de autoperpetuação: o instrumento definiu o som do gênero, e o som do gênero, por sua vez, consagrou o instrumento, solidificando seu lugar na história.

IV. O Mark VI em Perspectiva: Comparações e Diferenciais

O status lendário do Mark VI é melhor compreendido quando ele é colocado em contexto, comparando-o com seu antecessor, seu sucessor e seus concorrentes. Essa análise revela que sua supremacia foi resultado de uma combinação de inovação superior, timing estratégico e as deficiências percebidas nos outros.

Frente ao Antecessor (Super Balanced Action)

O Mark VI é uma evolução direta do Super Balanced Action (SBA), e as diferenças são mais de refinamento do que de reinvenção, especialmente nos modelos de transição.

  • Ergonomia: O Mark VI levou a ergonomia a um novo patamar. Embora o SBA tenha introduzido o conceito revolucionário de pratos deslocados, o Mark VI aperfeiçoou a experiência do músico com inovações como a espátula inclinada para o dedo mínimo da mão esquerda e uma chave de oitava maior e deslocada para a direita. Essas mudanças tornaram o instrumento notavelmente mais confortável, rápido e intuitivo.
  • Som: O consenso geral aponta para uma diferença sutil, mas significativa, no timbre. O SBA é frequentemente descrito como tendo um som mais “aberto” (spread) e talvez um pouco mais escuro, enquanto o Mark VI é caracterizado por um som mais “focado” e centrado. Testes comparativos sugerem que o Mark VI oferece um pouco mais de resistência ao sopro, enquanto o SBA é percebido como mais leve e responsivo.
  • Valor de Mercado: Historicamente, o Mark VI sempre foi o modelo mais valorizado. No entanto, nos últimos anos, os SBAs foram “redescobertos” por músicos e colecionadores. Sua raridade (produção muito menor que a do VI) e seu caráter sonoro distinto fizeram com que seus preços aumentassem drasticamente, chegando a ultrapassar os de muitos Mark VIs.

Frente ao Sucessor (Mark VII)

A história do Mark VII, lançado para altos e tenores por volta de 1974/75, é complexa e muitas vezes injusta. Seu maior obstáculo foi simplesmente não ser o Mark VI.

  • Ergonomia: A principal crítica ao Mark VII reside em sua ergonomia. Projetado com a consultoria do saxofonista clássico Frederick Hemke, o instrumento apresenta chaves maiores e mais espaçadas, especialmente o cluster do dedo mínimo direito. Muitos músicos acharam essa configuração “desajeitada”, “pesada” e menos confortável em comparação com a agilidade do Mark VI.
  • Som: As opiniões sobre o som do Mark VII são divididas. Alguns o descrevem como mais brilhante, mais potente e com um registro agudo mais fino que o do VI. Outros argumentam que seu som é muito semelhante ao de um Mark VI tardio e que, em alguns casos, pode até ser preferível. O design do Mark VII, com um diâmetro (bore) diferente, visava um som mais expansivo e poderoso, adequado para a era da fusão e dos grupos amplificados.
  • Transição e Híbridos: A transição entre os modelos foi confusa. Existem exemplares de Mark VI com números de série posteriores ao início oficial da produção do Mark VII. Além disso, os primeiros Mark VII, com um prefixo “M” no número de série, são muito procurados, pois acredita-se que utilizem corpos de Mark VI com a mecânica do Mark VII, criando um híbrido desejável que combina o melhor dos dois mundos para alguns músicos.

Frente aos Contemporâneos e Modernos

  • Contemporâneos Americanos (Conn, Buescher, King): Na década de 1950, os grandes fabricantes americanos ainda produziam saxofones de altíssima qualidade, famosos por seus timbres ricos e poderosos.[25] No entanto, eles não conseguiram acompanhar o ritmo da inovação ergonômica da Selmer. O Mark VI ofereceu um pacote completo: um som versátil e uma mecânica moderna e confortável que seus concorrentes simplesmente não conseguiam igualar na época, fazendo com que perdessem relevância no mercado profissional de jazz.
  • Descendentes Modernos (Yamaha, Yanagisawa, Selmer): Os saxofones profissionais modernos, muitos dos quais baseiam seu design de chaveamento diretamente no Mark VI, são frequentemente superiores em métricas objetivas como precisão de fabricação, consistência de qualidade e entonação. Fabricantes japoneses como Yamaha e Yanagisawa introduziram um nível de confiabilidade e perfeição mecânica que desafiou o domínio da Selmer a partir da década de 1970. A própria Selmer, com sua linha “Reference”, tenta recapturar a essência sonora de seus modelos icônicos (o Reference 54 para o Mark VI e o Reference 36 para o Balanced Action), reconhecendo o apelo duradouro desses designs vintage.

O legado do Mark VI, portanto, não foi construído no vácuo. Ele foi solidificado por uma confluência de fatores: sua própria excelência inovadora, a incapacidade de seus concorrentes da época de se adaptarem, a recepção controversa de seu próprio sucessor que reforçou a nostalgia pelo modelo anterior, e, finalmente, sua consagração como o “molde” genético para quase todos os saxofones modernos. Sua fortaleza foi erguida sobre sua própria excelência, as ruínas de seus rivais e a homenagem de seus descendentes.

V. O Panteão dos Mestres: Artistas que Definiram o Som do Mark VI

É impossível dissociar a história do Selmer Mark VI dos artistas que o empunharam. A adoção quase universal do instrumento pelos maiores saxofonistas da era pós-bop não apenas coincidiu com sua produção, mas foi fundamental para cimentar sua lenda. A relação foi simbiótica: os músicos não apenas usaram o Mark VI; eles o co-criaram em um sentido cultural.

O Instrumento da Era de Ouro do Jazz

Quando o Mark VI foi lançado, ele rapidamente se tornou a escolha dos gigantes do jazz. Cada solo icônico, cada gravação seminal, adicionava uma camada à mitologia do instrumento. Comprar um Mark VI tornou-se, para muitos, uma forma de buscar uma conexão tangível com esse panteão de heróis. Em vez de uma lista exaustiva, é mais elucidativo focar em perfis emblemáticos que demonstram a amplitude e o impacto do instrumento.

  • John Coltrane: Talvez o mais influente de todos, Coltrane trocou seu Super Balanced Action por um Mark VI tenor no início de sua carreira solo. O instrumento tornou-se o veículo para suas explorações harmônicas revolucionárias e sua busca incessante por novos territórios sonoros. Um de seus Mark VIs está hoje em exibição no Smithsonian Institution, um testemunho de sua importância histórica.
  • Sonny Rollins: Outro titã do saxofone tenor, Rollins adotou o Mark VI e o tornou sinônimo de um som robusto, expansivo e poderoso. Sua longa carreira com o instrumento ajudou a definir o som do tenor no jazz moderno.
  • Michael Brecker: Representando uma geração posterior, Brecker levou o Mark VI a novos contextos. Seu tenor, com o número de série 86.351, foi seu principal instrumento ao longo de praticamente toda a sua carreira, desde o funk-fusion dos Brecker Brothers e os solos em sucessos pop até seus inovadores álbuns de jazz. As fotos de seu saxofone, com o desgaste extremo nas chaves e no corpo, são um poderoso testemunho visual das dezenas de milhares de horas de dedicação que ele devotou ao instrumento.
  • Maceo Parker: No mundo do funk, o som cortante e percussivo do Mark VI alto de Maceo Parker, nos seus trabalhos com James Brown, definiu o papel do saxofone no gênero. Ele demonstrou a capacidade do instrumento de ser rítmico, agressivo e incisivo.
  • Outros Notáveis: A lista de usuários lendários é vasta e estilisticamente diversa, incluindo mestres do bebop como Phil Woods e Lou Donaldson , gigantes como Dexter Gordon e Stan Getz, inovadores como Wayne Shorter e Ornette Coleman (com seu raro alto com Lá grave), e ícones modernos como David Sanborn, Kenny Garrett e até mesmo a estrela do smooth jazz Kenny G, ilustrando a incrível adaptabilidade do instrumento.

Uma Nota sobre o Saxofone Clássico

Apesar de sua dominação no jazz e na música popular, o Mark VI nunca alcançou o mesmo status no mundo do saxofone clássico. Saxofonistas eruditos, em geral, tendem a preferir instrumentos com uma entonação mais precisa e uma consistência sonora mais uniforme em todos os registros, qualidades que são mais facilmente encontradas em modelos posteriores da Selmer, como a Série II e a Série III, ou em instrumentos de outros fabricantes.

VI. O Mercado do Mito: Cópias, Valorização e Falsificações

O status icônico e os preços elevados do Selmer Mark VI criaram um ecossistema de mercado complexo, repleto de cópias, clones, falsificações e um conjunto específico de fatores que determinam seu valor.

Clones, Cópias e Inspirações

O sucesso do Mark VI gerou uma indústria inteira de instrumentos que buscam replicar sua magia.

  • Os “Benchmarkers” Japoneses: Nos anos 70 e 80, fabricantes japoneses como Yanagisawa (com modelos como o S6) e Yamaha (com o YSS-61 soprano) começaram a produzir saxofones que eram clones diretos ou se baseavam fortemente no design do Mark VI. O objetivo era igualar ou até superar o original em termos de consistência de fabricação e precisão de entonação, estabelecendo novos padrões de qualidade.
  • As Réplicas Modernas: Atualmente, existe um mercado significativo de cópias de fabricação chinesa. Esses instrumentos tentam replicar a aparência, a gravação e a marca “Selmer Mark VI” a uma fração do custo. A qualidade desses clones é extremamente variável, indo de instrumentos surpreendentemente tocáveis a imitações de baixa qualidade.
  • A Homenagem da Própria Selmer: A própria Selmer Paris capitalizou o legado de seu modelo mais famoso com a introdução da linha “Reference”. O modelo Reference 54 é uma homenagem direta e uma tentativa de recriar as características sonoras e a sensação de um Mark VI com a precisão da tecnologia de fabricação moderna.

Avaliando um Mark VI: Fatores de Valorização

O preço de um Mark VI no mercado de usados pode variar drasticamente, de alguns milhares a dezenas de milhares de dólares. Vários fatores influenciam essa avaliação:

  • Número de Série (A Mística dos 5 Dígitos): Os modelos mais antigos, especialmente aqueles com números de série de cinco dígitos (abaixo de 100.000), são os mais cobiçados e, consequentemente, os mais caros. Isso se deve à crença generalizada de que eles possuem um som superior e foram fabricados com um nível de cuidado artesanal maior.
  • Laca Original: A condição da laca original é talvez o fator mais crítico para o valor de colecionador. Um instrumento com uma alta porcentagem de sua laca original (“orig lac”) vale significativamente mais do que um que foi relaqueado (“relac”). O processo de relaqueamento envolve polimento e aquecimento, que podem remover uma fina camada de metal e, teoricamente, alterar as características sonoras do instrumento.
  • Condição Física: A ausência de danos significativos, como amassados grandes, reparos estruturais ou soldas refeitas, é crucial. Um instrumento em bom estado físico, com o tudel original sem danos, sempre comandará um preço mais alto.
  • Montagem (EUA vs. França): Embora a qualidade seja comparável, a proveniência da montagem pode influenciar o preço dependendo do mercado. A gravação mais elaborada dos modelos montados nos EUA, por exemplo, pode ser mais desejável para alguns colecionadores, especialmente na América do Norte.
  • Proveniência: Um Mark VI com uma história documentada de ter pertencido a um artista famoso pode atingir valores astronômicos, tornando-se mais um artefato histórico do que apenas um instrumento musical. Um exemplo notável foi um tenor que pertenceu a Bob Berg, listado por $75.000.

Navegando no Mercado: Falsificações e Golpes

A alta demanda e os preços elevados tornam o mercado do Mark VI um terreno fértil para falsificações e golpes. Compradores devem ser extremamente cautelosos, especialmente em plataformas online. Preços que parecem “bons demais para ser verdade” quase sempre o são. Sinais de alerta incluem vendedores que se recusam a fornecer fotos adicionais detalhadas, discrepâncias na fonte da gravação do número de série ou do logotipo, e a utilização de peças não originais. A recomendação unânime de especialistas é comprar de revendedores respeitáveis e, sempre que possível, inspecionar e tocar o instrumento pessoalmente antes da compra.

O valor de um Mark VI é, portanto, um híbrido complexo de utilidade, escassez e narrativa. A “utilidade” é sua qualidade como um instrumento musical funcional. A “escassez” não é absoluta, pois milhares foram feitos, mas torna-se relevante para configurações específicas e desejáveis (por exemplo, um tenor de 5 dígitos com 98% de laca original). O fator mais poderoso, no entanto, é a “narrativa”. Essa narrativa engloba os mitos, os heróis do jazz e a própria história do instrumento. Cada fator de valorização é, na verdade, um proxy para uma parte dessa narrativa. Um comprador não está apenas pagando por um saxofone; está pagando por um pedaço de história, um artefato cultural e a chance de se conectar a esse poderoso legado. Isso explica a variação de preços que muitas vezes desafia a lógica puramente funcional.

VII. Mitos, Verdades e o Legado Duradouro

A aura que envolve o Selmer Mark VI é alimentada por uma mistura potente de fatos, opiniões subjetivas e mitos que foram perpetuados ao longo de décadas. Separar esses elementos é essencial para um entendimento equilibrado do instrumento.

Desconstruindo a Mitologia

  • Mito: Feito com Latão de Cápsulas de Artilharia da Segunda Guerra Mundial. Esta é talvez a lenda mais romântica e persistente, mas é categoricamente falsa. Foi desmentida diretamente por Jerome Selmer. A cronologia não faz sentido, pois a produção do Mark VI começou em 1954, quase uma década após o fim da guerra. Além disso, a composição do latão usado em munições seria muito macia e inadequada para a construção de um instrumento de sopro.
  • Mito: Os de 5 Dígitos (ou de um ano específico) são inerentemente os melhores. Esta é uma generalização de mercado, não uma verdade absoluta. Embora existam diferenças sonoras e de construção entre as diferentes eras de produção, a variação individual entre os instrumentos — resultado da fabricação manual e do ajuste fino constante — é tão grande que não existe uma “faixa de número de série mágica”. Acreditar nisso é ignorar a realidade de que existem exemplares excepcionais e medíocres de todas as épocas.
  • Mito: O Mark VI é o “melhor saxofone do mundo”. Esta afirmação é subjetiva e amplamente contestada. Trata-se de uma opinião, não de um fato empírico. Muitos músicos profissionais hoje, especialmente no campo clássico, preferem instrumentos modernos por sua confiabilidade, consistência e entonação superior. O Mark VI é um ponto de referência histórico e um instrumento fantástico, mas não necessariamente o ápice da engenharia de saxofones para todos os músicos e estilos.

As Verdades Inconvenientes

  • Verdade: A qualidade era inconsistente. A fabricação manual e a falta de padronização rigorosa resultaram em uma variação significativa de qualidade entre um instrumento e outro. Para cada Mark VI “mágico”, existem muitos outros que são simplesmente “bons” ou até mesmo medianos. Essa inconsistência é uma parte central da experiência do Mark VI.
  • Verdade: A entonação pode ser problemática. Comparado aos padrões de precisão alcançados pelos saxofones modernos fabricados com tecnologia de ponta, a escala do Mark VI não é perfeitamente uniforme. Ele exige que o músico “trabalhe” mais a afinação, fazendo ajustes de embocadura e posição para tocar perfeitamente afinado em todos os registros.
  • Verdade: A mecânica, embora revolucionária para a época, tem suas falhas. Certos elementos de design, como o anel de conexão da campânula, podem desenvolver vazamentos com o tempo, e algumas partes da mecânica, como o conector de esfera e soquete das chaves laterais, são propensas a ruído e desgaste.

O Legado Real: O Primeiro Saxofone Moderno

O verdadeiro e inegável legado do Mark VI é que ele foi o primeiro instrumento a combinar com sucesso uma sonoridade rica e versátil com uma ergonomia que se tornou o padrão para toda a indústria. Quase todos os saxofones profissionais projetados e fabricados hoje são descendentes diretos de seu design de chaveamento. Ele definiu como um saxofone moderno deve se sentir nas mãos de um músico.

A fascinação duradoura pelo Mark VI não existe apesar de suas contradições e mitos, mas por causa deles. A narrativa mítica — o som perfeito, o latão de guerra, a era de ouro do jazz — cria o desejo. A realidade — a inconsistência, as pequenas falhas — cria a “caça”. A busca por aquele exemplar único que vive à altura do mito, aquele que é verdadeiramente “mágico”, é o que alimenta o mercado, a discussão interminável e a própria lenda. Se todos os Mark VIs fossem perfeitos e idênticos, a mística provavelmente teria desaparecido há muito tempo. A lenda é um produto da tensão dinâmica entre a promessa do mito e a imprevisibilidade da realidade.

Conclusão: Mais que um Saxofone, um Padrão

A análise aprofundada do Selmer Mark VI revela um instrumento cuja identidade é muito mais complexa do que sua reputação mítica sugere. Ele não surgiu do vácuo, mas foi o produto de uma evolução de design cuidadosa, impulsionada pelas necessidades dos músicos de uma era musical transformadora. Lançado no momento histórico perfeito, foi elevado ao status de ícone pela geração mais influente de saxofonistas de jazz, que não apenas o usaram, mas o imbuíram de um capital cultural que perdura até hoje. Sua identidade é marcada por uma fascinante dualidade: a de um produto industrialmente fabricado que, no entanto, exibe uma inconsistência artesanal que alimenta sua mística e a busca incessante pelo exemplar “perfeito”.

Embora instrumentos modernos possam, e frequentemente o façam, superar o Mark VI em métricas objetivas como precisão de entonação e consistência de fabricação, ele permanece insuperável em seu significado histórico e cultural. O veredito final é que a importância do Mark VI não reside em ser objetivamente “o melhor” saxofone já feito, mas em ser o padrão definitivo. Ele é o meridiano de Greenwich do mundo do saxofone, o ponto de referência a partir do qual todos os outros são medidos, comparados e, muitas vezes, inspirados. Seu legado não é apenas o design que todos copiam, mas o som arquetípico que gerações de músicos continuam a perseguir em sua própria busca pela expressão musical. O Selmer Mark VI não é apenas um saxofone; é a definição do que um saxofone moderno deve ser.

 

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