A Arquitetura do Som: Um Olhar Sobre o Setup de Seamus Blake

No panteão do jazz contemporâneo, poucos saxofonistas possuem uma assinatura sônica tão distinta e influente quanto Seamus Blake. Vencedor da prestigiosa Thelonious Monk International Saxophone Competition em 2002, Blake consolidou-se como uma força proeminente, admirado tanto por seus pares quanto por uma legião de seguidores. Seu som é uma fusão magistral de poder tonal, que evoca a robustez dos grandes mestres do hard bop, com uma sofisticação harmônica e uma complexidade rítmica que o situam firmemente na vanguarda do jazz moderno. Uma característica marcante de sua execução é a capacidade de manter um som encorpado, rico e centrado em todos os registros do instrumento, incluindo um domínio notável do registro altíssimo, que ele utiliza não como um mero efeito dramático, mas como uma extensão natural e expressiva da voz do saxofone.

 

1. A Assinatura Sônica de Seamus Blake

Para compreender a origem desse som, é preciso ir além da análise de suas improvisações e composições e mergulhar naquilo que pode ser descrito como sua arquitetura sônica: o seu “setup”. Para um artista do calibre de Blake, o equipamento não é uma coleção aleatória de peças, mas um sistema meticulosamente construído, onde cada componente é escolhido para cumprir uma função específica. O próprio Blake articula essa filosofia de forma clara, sugerindo que o setup pode ser até mais fundamental do que a própria prática. “Acho que talvez seja mais o setup do que a prática diligente”, afirma ele, acrescentando que “um bom músico com um bom equipamento pode fazer um bom som”. Essa perspectiva é sustentada por sua crença de que a concepção sonora deve preceder a escolha do equipamento: “Você deve ter um som em sua cabeça”. Isso posiciona Blake não apenas como um instrumentista, mas como um verdadeiro arquiteto sônico, que projeta e constrói as ferramentas necessárias para realizar uma visão artística preconcebida.

Essa arquitetura se manifesta em uma dualidade fascinante que define sua carreira: a coexistência do mundo acústico e do eletrônico. Blake não é apenas um mestre do saxofone tenor; ele é também um explorador destemido do EWI (Electronic Wind Instrument), que ele emprega não como um acessório, mas como uma voz primária e integral em sua música. Essa oscilação entre a tradição do jazz acústico e as fronteiras da música eletrônica reflete uma personalidade artística que, como descrito, é “constitucionalmente incapaz de fazer apenas uma coisa”. Este relatório se propõe a desconstruir essa arquitetura sônica, analisando em detalhe cada componente do seu setup, desde o saxofone vintage até os sintetizadores de software, para revelar como Seamus Blake constrói, peça por peça, um dos sons mais reconhecíveis do jazz atual.

2. O Motor Principal – A Configuração do Saxofone Tenor

O núcleo do universo sonoro de Seamus Blake reside em sua configuração de saxofone tenor. É um sistema complexo e finamente ajustado que combina elementos vintage com tecnologia de boutique moderna, resultando em um equilíbrio perfeito entre calor, potência e flexibilidade.

2.1. O Instrumento: Uma Fundação Vintage – Selmer Super Balanced Action

A base do seu som tenor é um saxofone Selmer Super Balanced Action (SBA), fabricado entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950. A escolha de um SBA em vez do seu sucessor mais famoso, o Mark VI, é uma decisão estética fundamental. O SBA é conhecido por possuir um núcleo tonal geralmente mais escuro, focado e com uma qualidade “quente” em comparação com a projeção mais ampla e brilhante de muitos Mark VIs. Este instrumento vintage fornece a tela sonora fundamental sobre a qual Blake pinta suas paisagens musicais, estabelecendo uma base rica em harmônicos e com uma complexidade inerente que é difícil de replicar em instrumentos modernos.

2.2. O Tudel: Refinamento Moderno – Santtonio Custom Necks

Demonstrando uma mentalidade pragmática que prioriza o desempenho sobre o purismo de colecionador, Blake foi visto utilizando tudeis customizados da marca Santtonio, especificamente modelos feitos de bronze e latão. A decisão de substituir o tudel original de um saxofone vintage tão valioso é significativa. O tudel é um componente crítico que influencia a entonação, a resposta e a cor tonal do instrumento. O uso de diferentes materiais sugere uma experimentação contínua para otimizar o saxofone para diferentes contextos. Um tudel de bronze tende a adicionar mais calor, profundidade e complexidade aos harmônicos, enquanto um de latão pode oferecer mais brilho, projeção e uma resposta mais imediata. Essa modificação moderna em uma base vintage mostra sua busca incansável pelo ajuste fino de sua voz acústica.

2.3. A Boquilha: A Evolução do Coração do Som

A jornada de Blake em busca da boquilha perfeita é talvez o aspecto mais revelador de sua filosofia de som. Ela ilustra uma transição de um tesouro vintage para uma obra-prima de boutique moderna, não em busca de um som diferente, mas da perfeição de um som já estabelecido.

2.3.1. A Era Atual: Ted Klum TonaMax HR 8*

Atualmente, o coração do seu setup é uma boquilha Ted Klum TonaMax de hard rubber (HR) com uma abertura de 8*, que corresponde a aproximadamente polegadas. Ted Klum é um artesão de boutique reverenciado pela sua habilidade de recriar a essência e a complexidade das lendárias boquilhas vintage com a precisão e a consistência da fabricação moderna. A escolha de Blake por uma Klum não foi acidental. Ele procurou Klum especificamente porque, em suas palavras, ele é “o único cara de boquilhas moderno que eu conheço que eu acho que está fazendo coisas realmente, realmente ótimas”. Blake estava em busca de uma boquilha com uma “sensação antiga” (“old feel”), indicando que seu objetivo não era reinventar seu som, mas sim otimizá-lo. A TonaMax oferece a complexidade e o calor de uma boquilha vintage, mas com uma resposta, projeção e consistência que são cruciais para um músico de turnê de alto nível.

2.3.2. O Legado da Otto Link “Reso Chamber”

Antes de adotar a Ted Klum, Blake era conhecido por usar uma cobiçada boquilha Otto Link “Reso Chamber” de hard rubber dos anos 1940. Essas boquilhas são lendárias na comunidade do jazz, associadas a alguns dos sons de tenor mais icônicos da história. No entanto, elas também são notoriamente inconsistentes em sua fabricação, com variações significativas de uma peça para outra. A transição de Blake de uma Reso Chamber vintage para uma Klum moderna é emblemática da jornada de muitos saxofonistas profissionais. Ele não estava abandonando o conceito sonoro da Otto Link – o som quente, escuro e complexo que ele claramente prefere. Em vez disso, ele estava buscando uma atualização tecnológica. A mudança foi motivada pela necessidade de um equipamento mais confiável e otimizado, que pudesse entregar consistentemente o som desejado noite após noite, sem a imprevisibilidade de uma peça vintage. Essencialmente, ele encontrou em Ted Klum um artesão capaz de replicar e aperfeiçoar o ideal sonoro da Reso Chamber, eliminando suas deficiências.

2.4. A Força de Ligação: Abraçadeira e Palhetas

Completando o seu “motor” sonoro, Blake utiliza uma combinação de abraçadeira e palhetas que pode ser descrita como uma “configuração de potência”. Ele usa uma abraçadeira Ishimori de Prata Esterlina e, mais notavelmente, palhetas Roberto’s RW Reeds na dureza 4 Hard. Anteriormente, ele foi um artista endossado pela Rico, usando palhetas Rico Reserve na dureza 3.5, o que indica uma evolução para um setup ainda mais resistente ao longo do tempo.

A combinação de uma boquilha com uma abertura grande de e uma palheta de dureza 4 Hard é extremamente exigente fisicamente. Requer um suporte de ar imenso e uma embocadura bem desenvolvida. No entanto, essa configuração permite um alcance dinâmico massivo e a capacidade de projetar um som enorme e cheio sem que ele se torne fino ou perca o corpo. A abraçadeira de prata Ishimori desempenha um papel crucial de equilíbrio neste sistema. A prata é conhecida por adicionar brilho, vivacidade e ressonância ao som. Esta escolha provavelmente serve para contrabalançar a escuridão inerente da boquilha de hard rubber e da palheta dura, adicionando a “vibração com ‘buzz'” que Blake aprecia e que garante que seu som tenha corte e presença, mesmo nos contextos mais densos.

Assim, o setup de tenor de Blake revela-se um sistema finamente equilibrado de forças complementares. A base quente e vintage do saxofone SBA é impulsionada por um motor moderno e de alta resistência (boquilha Klum + palheta dura) e, por sua vez, temperada com um toque de brilho e ressonância (tudel customizado e abraçadeira de prata). Cada componente é uma peça de um quebra-cabeça, trabalhando em conjunto para alcançar a visão sônica holística do artista.

3. A Fronteira Eletrônica – A Configuração do EWI

A identidade artística de Seamus Blake não se limita ao mundo acústico. Ele é um dos mais proeminentes e sofisticados usuários do EWI (Electronic Wind Instrument) no jazz contemporâneo, tratando-o não como um instrumento secundário, mas como uma voz central em seu arsenal criativo. Sua abordagem ao EWI espelha sua abordagem ao saxofone: uma busca incansável por controle expressivo e profundidade sônica.

3.1. O Instrumento: Akai EWI 5000

Embora o modelo exato nem sempre seja especificado, as pistas técnicas que Blake fornece apontam fortemente para o uso de um Akai EWI 5000. Em uma discussão técnica, ele menciona a importância do “controle MIDI de alta resolução de 14 bits” para os filtros, uma característica que ele sentiu que fez uma diferença notável em sua capacidade de controle. O EWI 5000 é um dos poucos controladores de sopro no mercado que oferece essa capacidade. O MIDI padrão opera com uma resolução de 7 bits (128 passos), o que pode resultar em mudanças de parâmetro audivelmente “escalonadas” ou não naturais. O MIDI de 14 bits expande isso para 16.384 passos, permitindo um controle de filtro e outros parâmetros de forma incrivelmente suave e sutil, aproximando-se da fluidez de um instrumento acústico. A preocupação de Blake com este detalhe técnico revela um músico que não se contenta com as limitações da tecnologia padrão e busca ativamente ferramentas que possam traduzir as nuances de sua respiração e expressão da forma mais fiel possível.

3.2. O Cérebro Digital: Software e Sound Design

A sofisticação de Blake com o EWI vai muito além da escolha do controlador. Ele é um programador e designer de som habilidoso, que molda ativamente suas próprias paletas sônicas. Ele utiliza softwares de produção musical poderosos como Reason e Logic Pro. Notavelmente, ele elogia e utiliza bibliotecas de som especializadas como o Cyclone ReFill, afirmando que foi uma “grande fonte de inspiração” e que ele chegou a integrar um segundo laptop em seu setup ao vivo apenas para incorporar o Reason. Em 2011, antes do lançamento de seu álbum eletrônico, ele já comentava: “estou trabalhando em um álbum que apresenta algum ewi… Definitivamente haverá alguns cyclones no meu rack”.

Isso demonstra que Blake não é um mero usuário de sons pré-fabricados. Ele está profundamente envolvido no processo de criação de timbres, usando o EWI como uma extensão de sua visão composicional. O álbum Superconductor, de 2015, é a manifestação mais completa dessa exploração. Nele, o EWI não é um efeito ou um enfeite, mas um instrumento orquestral central, tecendo melodias complexas e texturas ricas ao lado de músicos como John Scofield e Gonzalo Rubalcaba. Sua abordagem ao EWI é, portanto, um espelho direto de sua abordagem ao saxofone. Em ambos os domínios, ele é um arquiteto que exige controle total sobre a matéria-prima sônica. O EWI não é uma fuga do saxofone, mas a continuação da mesma filosofia artística por outros meios, buscando a mesma expressividade e controle em um universo sônico ilimitado.

4. O Arsenal Estendido – Alto, Soprano e Efeitos

Embora a identidade de Seamus Blake esteja firmemente ancorada no saxofone tenor e no EWI, seu arsenal musical inclui outros instrumentos e ferramentas que, embora menos proeminentes, oferecem um vislumbre de sua jornada artística.

4.1. A Neblina sobre o Alto e o Soprano

Um fato notável que emerge da pesquisa é a escassez de informações detalhadas sobre os setups de saxofone alto e soprano de Blake. Embora ele seja listado como um músico que toca múltiplos saxofones, as especificidades de suas escolhas de boquilhas, palhetas ou mesmo modelos de instrumentos para o alto e o soprano não são documentadas publicamente com o mesmo nível de detalhe que seu equipamento de tenor. Essa ausência de dados não deve ser vista como uma falha na pesquisa, mas sim como um indicador da própria orientação artística de Blake. Sugere que, embora ele seja um multi-instrumentista competente, capaz de tocar esses instrumentos quando necessário, sua voz principal, seu foco de pesquisa sonora e sua identidade artística residem esmagadoramente no saxofone tenor e, cada vez mais, no EWI.

4.2. Raízes Elétricas: O Pedal Wah-Wah e The Bloomdaddies

Um ponto de dados histórico crucial para entender a trajetória eletrônica de Blake é seu envolvimento com a banda The Bloomdaddies. Descrito como um “quinteto elétrico” e um projeto de “jazz grunge alternativo e funky”, esta banda representou uma faceta inicial e mais crua de suas explorações sônicas. Neste contexto, Blake alimentava o som de seu saxofone através de um pedal wah-wah. O pedal wah-wah é, em sua essência, um filtro de frequência controlado por pedal. O uso deste efeito no início de sua carreira mostra que o interesse de Blake em manipular eletronicamente o timbre do saxofone não é um desenvolvimento tardio, mas uma linha contínua em seu percurso artístico.

Esta exploração inicial com um efeito de modulação de filtro analógico pode ser vista como a precursora direta de sua imersão posterior e muito mais sofisticada no EWI. A tecnologia evoluiu drasticamente – de um pedal analógico no chão para um controlador de sopro digital com controle MIDI de 14 bits sobre filtros de software –, mas o impulso artístico fundamental permaneceu o mesmo: a vontade de manipular a textura e o timbre do som de sopro em tempo real, para além das capacidades de um instrumento puramente acústico. Isso estabelece uma narrativa coesa em sua jornada, ligando o “grunge jazz” dos Bloomdaddies ao som futurista e polido de álbuns como Superconductor.

5. Síntese – Conectando o Equipamento à Filosofia do Artista

A análise detalhada do equipamento de Seamus Blake revela um sistema coeso e intencional, onde cada escolha serve a uma visão sonora unificadora. Essa visão foi articulada pelo próprio Blake de forma sucinta e poderosa: ele busca um som que se situe “entre um trompete e um instrumento de sopro de madeira”, um som que possua “a potência e o brilho metálico de um trompete” e, ao mesmo tempo, “o calor e a madeira de um clarinete ou o sopro e o ar de uma flauta”. O seu setup, tanto acústico quanto eletrônico, é a prova física dessa filosofia.

Cada componente de sua configuração de tenor contribui para essa dualidade:

  • O Saxofone Selmer Super Balanced Action fornece a base fundamental: o “calor e a madeira”. É a alma vintage e orgânica de seu som.
  • A Boquilha Ted Klum 8 e a Palheta 4 Hard* constituem o motor de alta performance que entrega “a potência e o brilho metálico”. É a parte do sistema que permite que o saxofone compita em volume e projeção com instrumentos de metal.
  • A Abraçadeira de Prata Ishimori e os Tudeis Customizados atuam como o elemento de refinamento, adicionando “o sopro e o ar”. Eles fornecem os harmônicos superiores e a ressonância que dão vida e complexidade ao som, garantindo que a potência nunca se torne estridente e que o calor nunca se torne opaco.
  • O EWI, por sua vez, representa a transcendência dessa dualidade. Com ele, Blake pode se tornar qualquer um desses sons, todos eles simultaneamente, ou algo inteiramente novo. É a ferramenta que lhe permite explorar as texturas do “sopro e ar” de uma flauta, a complexidade harmônica de um sintetizador e a potência de qualquer instrumento imaginável, tudo com a expressividade de um instrumento de sopro.

Em conclusão, o setup de Seamus Blake é muito mais do que uma lista de compras para músicos aspirantes. É um estudo de caso fascinante sobre como um artista de classe mundial constrói uma ponte entre a tradição e a inovação. Ele demonstra um profundo respeito pelo legado sonoro do jazz, evidente em sua escolha de um saxofone vintage e em sua busca por uma “sensação antiga” em sua boquilha. Ao mesmo tempo, ele abraça a tecnologia de ponta, não como um fim em si mesma, mas como uma ferramenta precisa para superar limitações e realizar uma visão sônica profundamente pessoal e intransigente. A arquitetura de seu som é um testemunho de um artista que não apenas toca música, mas a constrói desde seus fundamentos sônicos.

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